"Vem por aqui" dizem-me
alguns com os olhos doces estendendo-me os braços, e seguros de que seria bom
que eu os ouvisse quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com
olhos lassos, (há, nos olhos meus, ironias e cansaços) e cruzo os braços, e
nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar
ninguém. Que eu vivo com o mesmo sem-vontade com que rasguei o ventre à minha
mãe não, não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos... Se ao
que busco saber nenhum de vós responde por que me repetis: "vem por
aqui!"
Prefiro escorregar nos becos
lamacentos, redemoinhar aos ventos, como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí... Se vim ao mundo, foi só para desflorar florestas virgens, e desenhar
meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós que me
dareis impulsos, ferramentas e coragem para eu derrubar os meus obstáculos...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, e vós amais o que é fácil! Eu
amo o longe e a miragem, amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas, tendes
jardins, tendes canteiros, tendes pátria, tendes tetos, e tendes regras, e
tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha loucura! Levanto-a, como um
facho, a arder na noite escura, e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos
lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos
tiveram mãe; mas eu, que nunca principio nem acabo, nasci do amor que há entre
Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas
intenções, ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por
aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou, é uma onda que se
alevantou, é um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, não sei
para onde vou, sei que não vou por aí!"
José Régio, pseudônimo literário de José Maria
dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em
Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos
fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador.
Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta que
primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de
estreia "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) apresentou quase todo o
elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos
entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a
consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão,
a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si
mesmos.
in, Releituras e Textos ( http://www.releituras.com/jregio_cantico.asp)
É o poema que me descreve de alto a baixo.
ResponderEliminarBeijos.